Connect with us

SOCIOCOGITANDO

Pessoalização das Práticas Religiosas, hoje: Crise ou Modernismo?

Publicado há

aos

Hoje, já não é comum viver-se como um conjunto de pessoas em interação, mas como pessoas que apenas vivem, mas não convivem, sobrepostas em andares das cidades, ou separados por muros altos, que se vêm e não se olham, se conhecem e não se reconhecem, se cruzam e não se encontram e, por conseguinte, desligados uns dos outros, mesmo se aliados por laços de comodidade e interesse. As incivilidades, são disso um sintoma e, muitas vezes, traduzem a exclusão dos outros, o sentimento de cada um por si, Deus para todos, como se os outros não existissem e não fossem concidadãos.

Nota-se, portanto, o sentimento de viver numa sociedade insegura (Castel, 2003), de risco e de incerteza (Beck, 2015). E por isso, cada um faz as suas escolhas e procura construir o seu universo de significações segundo as suas convicções, procuras e interesses próprios. A autoridade não se impõe e as orientações não são pré-determinadas. Contudo, a ausência de referências não se afigura salutar para a vivência humana e social, dado que as mesmas conferem sentido às angústias do dever e à necessidade permanente de tomar decisões.

Por um lado, a pessoalização desliga as pessoas das antigas formas de solidariedade, colocando muitas pessoas na precariedade, olhando para a situação de crise em que estamos mergulhados, mormente com aumento vertiginoso do desemprego, insegurança político-militar, assimetrias financeiro-económicas… Por outro, com ela valoriza-se de novo a solidariedade familiar entre outras, embora a família e o casamento estejam a perder o seu estatuto de segurança e duração, tornando-se fonte de tensão e conflitos perante a “destradiocionalização” dos papéis e dos estatutos de género.

Os suportes mais personalizados face a estas formas de pessoalização, fazem-se via internet, influencers, novos guias espirituais…. Daí que se nota uma depressão típica das sociedades da modernidade avançada analisada por Ehrenberg (2000). Se as tarefas do quotidiano conferem à pessoa a sua liberdade, não deixam de a confrontar igualmente com o desconcertante, a solidão, a depressão, o stress, o desnorteamento…de que tanto se tem vindo a falar nos últimos anos.

Constatamos, portanto, o enfraquecimento das regulações comunitárias das religiões (desinstitucionalização do crer) (Dubet, 2002) e, mais, a crise das crenças tradicionais. Por exemplo, a autoridade religiosa tem muito menos capacidade de intervenção sobre a soberania individual relativa às opções e práticas políticas ou as preferências sexuais.

Assiste-se, igualmente, ao desenvolvimento de uma “religião à la carte” (Schlegel, 1995), caracterizada por uma “dinâmica do provisório” por parte das pessoas em busca de sentido. A pessoalização da experiência religiosa torna-se uma modalidade da sua adaptação aos “dados culturais da modernidade inacabada” (Champion et al, 1990), mas essencialmente orientadas para a materialidade da vida e não para uma transcendência da mesma. Nestas dimensões, o sagrado assume tão só a sua dimensão imanente no sentido durkheimiano do termo.

Concluindo, os conteúdos da fé, outrora objectivados, aceites como revelados e transmitidos pela tradição, são, nos nossos dias, objecto de triagem, selecção, avaliação e depois transformados pelas consciências pessoais à medida da sua autenticidade apreendida e experimentada. Para a grande maioria dos cidadãos hodiernos, dificilmente a Religião continua a apresentar-se como um dado adquirido, de uma vez por todas, no quadro de uma instituição de tutela, regulamentada por um sistema definidor do verdadeiro, do justo e do proibido. É antes, e acima de tudo, um dispositivo de crenças e práticas com as quais as pessoas ziguezagueiam ou fazem filtragem mais ou menos livremente em função da sua própria vida. Estamos certos ou perdidos? Crise religiosa ou Modernismo?

 

Continue Lendo
Clique para comentar

Leave a Reply

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Mais Lidas