OPINIÃO
A Santa Prostituta

Não havia, na zona, mulher mais recatada que Maria. Moça íntegra. Trajava-se sempre de forma discreta: saias longas, blusas de mangas compridas, lenço cobrindo a cabeça e uma capulana cobrindo as costas. Passava os dias na igreja de São José, limpando, orando e animando as missas. Aos domingos, vestia uma túnica e subia ao altar como acólita. Era considerada um exemplo de virtude pelo padre e pelos fiéis. O padre Rodrigo, um brasileiro de fala mansa, recomendava frequentemente que as jovens da comunidade seguissem os passos de Maria. Afinal, até o andar dela era singelo. Olhar tímido, cabeça baixa, mãos sempre ocupadas com uma Bíblia e um crucifixo. Nos pés, calçava simples sandálias rasteiras, parecendo saída de um quadro do tempo de Jesus.
Mas, ao cair da noite, quando todos se recolhiam, Maria transformava-se. Como que possuída por outro espírito, borrava o rosto angelical com uma máscara de maquiagem. O lápis preto escurecia as sobrancelhas, enquanto um batom vermelho-vivo transfigurava a sua aparência, tornando-a provocante. As tranças eram escondidas sob perucas, que ora eram crespas e curtas, ora lisas e longas. As saias recatadas davam lugar a mini-saias; as blusas comportadas desapareciam, restando apenas sutiãs. A Bíblia e o crucifixo eram substituídos por uma pequena bolsa brilhante. As sandálias rasteiras cederam espaço a saltos altos e chamativos, e as orelhas, eram adornadas por bijuterias brilhantes mais que latão reluzente.
Assim, Maria dava lugar a Jéssica, nome que ela mesma adoptara como seu nome de guerra. Se Maria era simples e tímida, Jéssica era ousada e destemida. Onde Maria se resguardava, Jéssica se exibia. Vestida dessa forma quase irreconhecível, Jéssica caminhava até o semáforo da rua Bagdade, em frente à escola 25 de Abril, e ali passava as noites. Dançava e rebolava, exibindo seu corpo escultural. Competia ferozmente com outras colegas de trabalho, discutindo se tentavam roubar-lhe clientes. Sua habilidade na arte da sedução era tamanha que coleccionava clientes devotos como crentes na igreja. Muitos diziam que Jéssica gemia em línguas estranhas, encantava os homens com a astúcia de Jezabel e dominava-os com a engenhosidade de Dalila. Casados abandonavam seus lares por uma única noite com ela.
De noite, Jéssica era extravagante e incontrolável, mas ao primeiro canto do galo, desaparecia como um vulto na madrugada. Enquanto a cidade despertava, Maria surgia novamente, humilde e serena, nas profundezas do anonimato. No entanto, a dualidade não passava despercebida. Aqueles que a criticavam de dia eram os mesmos que a procuravam às escondidas durante a noite.
O tempo passou, e Maria e Jéssica coexistiam no mesmo corpo, alternando-se como dia e noite. Mas uma noite, algo inesperado aconteceu. Jéssica fora chamada para um programa especial nos semáforos do bar Bagdade. O cliente prometia uma soma generosa, e ela não hesitou. Entrou no carro, um Corolla antigo de vidros fumê. O cheiro forte de cigarro impregnou o ar, mas Jéssica, não se intimidou.
— Para onde vamos? Perguntou segurando a alça de segurança.
O homem não respondeu. Virou numa curva e estacionou em um beco escuro. Desceu do carro e acenou para que ela seguisse-o. Jéssica hesitou por um momento, mas o acompanhou. Adentraram um lugar sombrio, onde uma única luz, embutida em um letreiro torto com a palavra “PENSÃO”, iluminava a rua. Subiram as escadas, e o homem abriu a porta de um quarto pequeno e sujo.
Jéssica observava cada movimento. O homem, de costas, tirou o casaco e acendeu outro cigarro. Seu sotaque era inconfundível: ele era brasileiro.
— Tira a roupa. Ordenou.
Jéssica obedeceu, mas quando ele virou-se para ela, o choque foi mútuo.
— Maria?! Gritou o homem, estupefacto.
— Padre Rodrigo?! Respondeu ela, incrédula.
Ali estavam os dois, frente a frente: um homem que vivia para o altar e uma mulher que pregava a modéstia. A Jéssica perdia espaço para as imperfeições da Maria e a Maria perdia toda credibilidade da Jéssica.
— O que você faz aqui? Ele perguntou, envergonhado.
O silêncio constrangedor inundou o quarto. Jéssica ajustava a saia curta, enquanto o padre apagava o cigarro com pressa. Sentada na cama, Maria começou a confessar: contou que era uma moça da noite, que precisava do dinheiro para sobreviver, e que desse sustento vinham os dízimos e as ofertas que ela entregava à igreja.
— E você, padre? O que faz aqui?
Rodrigo suspirou e confessou também. Admitiu que, apesar de ser padre, era homem como qualquer outro, com desejos e fraquezas.
— A carne é fraca. Murmurou, envergonhado.
Ali, no silêncio daquele quarto imundo, entre confissões e olhares cúmplices, ambos se entenderam. Saciaram-se mutuamente, como se aquele momento fosse um descanso entre suas vidas duplas.
Na manhã seguinte, lá estavam eles, no altar da igreja: o padre e a acólita, celebrando a missa como se nada houvesse acontecido.
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