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OPINIÃO

Burro-cracia

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Numa dessas tardes, tudo vai rebentar: o sol, a atmosfera, a troposfera… Até os anjos descerão para travar a guerra dos deuses e eu aqui sentado, esperando um momento para ser atendido.

Há semanas que aguardo a tão desejada entrevista. Mas começo a achar que ela foi cancelada, que a vaga já foi ocupada ou que tudo não passa de mais um produto da infame burocracia. Aliás, o próprio nome já diz tudo: burro-cracia. Um sistema criado pelos burros para justificar a preguiça e a vagabundagem.

Olho para o relógio no meu pulso, os minutos se esgotam. A gravata aperta minha garganta, sufocando-me. Nesta sala abafada, só penso em tirar a camisa. Já conheço cada detalhe desse espaço: as paredes brancas lembram-me um hospício. A espera, por sua vez, é como uma camisa de força, forçando-me a desistir do desejo de viver.

Aliás, quem foi que inventou as salas? Se foi Deus, acredito que era para castigar a humanidade. Se foi um homem, com certeza ele não estava no seu estado normal. Salas são lugares onde a tristeza abraça-nos e o silêncio nos devora.

Nesta mesma sala, numa tarde igualmente quente, pensei em suicídio. Sim, suicídio. Por quê? Não sei ao certo. Só sei que, nesse momento, a tristeza segurou-me pelos ombros e trouxe-me uma lucidez tremenda. Fugi como um louco. Transpirava, sentia-me sufocado. Naquele dia, entendi o porquê tanta gente graúda recorre ao suicídio. E digo: a culpa é das salas.

Achei que havia perdido a entrevista naquela ocasião, mas a secretária assegurou-me que eu não tinha motivos para preocupação, pois o director nem sequer aparecera e quando aparece fica enfurnado em sua sala. Ah, a sala do director… Lá é onde as maiores tristezas residem. Sempre que vejo aquele homem, ele está nervoso, com um bico que lembra o de uma águia. Entra sem responder os cumprimentos e, minutos depois, sai apressado para o carro, sem dizer palavra alguma. Às vezes penso que ele já se suicidou faz tempo, pois quem tem olhos para ver sabe: aquele homem é um zumbi.

Já considerei abordá-lo na rua, e pedir-lhe para fazermos a entrevista ali mesmo, mas ele evapora antes que eu consiga. Parece que ele também está à espera, à sua própria maneira, prisioneiro da mesma burocracia.

Antes de eu sair de casa, minha esposa, deu-me uma marmita. Perguntei o porquê, e ela, respondeu:

— Marido, teu trabalho é esperar o tempo passar.

Aceitei as palavras com desassossego. E depois desejou-me bom trabalho. Mas ela tem razão. Costumo sair daqui apenas quando o horário laboral termina. Subo no autocarro e sou deixado em casa.

Chamam-me “o colega das esperas”. No início, o apelido incomodava-me, mas agora até sorrio e aceno. Um dia, algo curioso aconteceu: deram-me o salário. Quando fui perguntar na administração, vi meu nome destacado na lista de funcionários: “António da Rosa Duarte — Repartição das Esperas”.

Corri para casa com o dinheiro, mas minha esposa, ao olhar-me, parecia carregada de piedade. Sentou-se no chão frio da varanda e disse:

— Amor, isso não é dinheiro, é areia.

Areia? Como assim? Eu estava louco? Mas eu já havia feito compras! Quando apontei para as sacolas, ela respondeu:

— Trouxeste água salgada em plásticos para casa.

Será que vivo prisioneiro da tristeza dessas salas? Ou tudo não passa de um delírio da espera?

As horas passam e a secretária entra na sala. Lanço-lhe um sorriso, esperando boas notícias: talvez serei finalmente atendido. Mas a voz dela aterroriza-me:

— Vamos, que já são horas. O director hoje também não veio. Volte amanhã, que ele cá estará.

 

 

 

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