OPINIÃO
A erosão da reverência aos mais velhos
Ainda guardo na memória os dias em que a palavra de um mais velho era lei. Cresci a ouvir o provérbio que dizia: “O velho que morre é uma biblioteca que arde”. Ninguém ousava interromper um ancião a falar. Ninguém se sentava antes dele dar sinal. E quando uma criança passava por um adulto, fazia-se pequeno gesto de reverência, quase um pedido de bênção silenciosa. Assim era, e eu vi.
Recordo um episódio da minha infância, numa aldeia do distrito de Mecubúri. Um velho regressava da machamba, bem cansado, com enxada ao ombro. Ao vê-lo passar, os jovens interromperam a brincadeira, abriram espaço e até se prontificaram a carregar a lenha que trazia. Hoje, ao revisitar aquela cena na memória, sinto que presenciei um acto de respeito que valia mais do que qualquer discurso sobre moral.
Mas esse mundo foi-se desfazendo. A aldeia tornou-se global. A televisão, a internet, os telemóveis entraram sem pedir licença. Trouxeram consigo muitas facilidades, é verdade, mas também um vírus silencioso: a erosão do respeito pelos mais velhos.
Outro dia, vi um jovem sentado no chapa que ia em direcção a Mwìti, de auscultadores nos ouvidos, enquanto uma idosa, de corpo curvado, ficou de pé a balançar com a estrada esburacada. Pedi-lhe que cedesse o lugar. Ele olhou-me com desdém e respondeu:
— Cada um por si, meu tio.
Senti um aperto na alma. Aquele gesto, simples mas cruel, mostrava a distância entre a aldeia de ontem e a aldeia global de hoje. Onde antes os mais velhos eram vistos como fontes de sabedoria, agora são tratados como peso, como gente ultrapassada.
Não se trata apenas de etiqueta social. O respeito pelos mais velhos sempre foi coluna vertebral da nossa cultura africana. Era através deles que as histórias passavam, que os ritos de iniciação se faziam, que as famílias encontravam equilíbrio. Ao perder essa reverência, não perdemos apenas bons modos: perdemos identidade, perdemos bússola.
E não me iludo. Sei que não é apenas culpa da juventude. É também responsabilidade dos adultos que se renderam à pressa da modernidade, que já não contam histórias à volta da fogueira, que já não ensinam o valor da saudação, que já não corrigem o filho quando este fala de qualquer maneira ao avô.
Escrevo esta crónica como quem levanta a voz no meio do ruído da aldeia global. O mundo pode ser moderno, sim. Podemos usar internet, telemóveis, jeans e músicas estrangeiras. Mas não podemos permitir que a pressa e o brilho do novo apaguem a reverência devida àqueles que, com as suas rugas, carregam a história do nosso povo.
Enquanto ainda vejo idosos a caminhar sozinhos, com passos hesitantes e olhares ignorados, não posso calar. O respeito não é apenas um valor tradicional: é uma escola de humanidade. E sem humanidade, a aldeia global será apenas um mercado barulhento, sem memória, sem raízes, sem futuro.
O progresso não está apenas nos meios de transporte ou na tecnologia; está na forma como tratamos uns aos outros. E mais não disse!
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