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OPINIÃO

Da ortodoxia (teoria) à orto-práxis (accão/prática)

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Um filósofo certa vez afirmou que é possível fazer coisas com palavras. À primeira vista, pode parecer uma constatação banal, mas é profundamente verdadeira. Quando alguém diz “busca a caneta para mim” e o outro o faz, há uma acção provocada pela linguagem. As palavras têm poder de transformar o mundo. Da mesma forma, quando o Presidente da República, Francisco Chapo, nomeia os mais altos órgãos do poder judicial, ele não realiza apenas um acto administrativo, ele realiza também um gesto político, social e simbólico.

Vivemos um tempo em que as denúncias sobre excessos e incompatibilidades no exercício do poder se multiplicam. Recentemente, um grupo jovens, no âmbito do espírito de cidadania e fazendo valer o facto de estarmos num estado de direito democrático e de justiça social, recorreu à via judicial para questionar a acumulação de cargos por parte do Presidente da República, que é também presidente de um Partido. Outrossim, há calorosos debates que apontam para uma crescente interferência do poder Executivo sobre os outros poderes (o Legislativo e o Judicial). O Presidente da República, que também é Chefe de Estado, tem influência directa sobre a nomeação dos órgãos do poder judicial – até nomeia Reitores de universidades públicas –, o que suscita preocupações quanto ao equilíbrio entre os três poderes.

O que se observa, portanto, é uma concentração de poderes, onde o Executivo controla tanto a produção de leis quanto a sua aplicação e as sanções que decorrem delas. Mas, será que esta era a ideia original da teoria da separação dos poderes? Para compreender isso, é preciso revisitar O Espírito das Leis (1748) de Montesquieu, que defendia que ninguém deveria acumular o poder legislativo, o executivo e o judicial, pois tal concentração levaria inevitavelmente à tirania. Ou então, ninguém pode ser sacerdote, profeta e rei simultaneamente, se quisermos usar ditames religiosos/teológicos.

Essa teoria, de separação de poderes, nascida como crítica ao absolutismo, inspirou a estrutura das democracias modernas, inclusive a que Moçambique almeja consolidar. Mas, passados mais de trinta anos, será que o país incorporou verdadeiramente o espírito das leis? O jurista António Ucama, no seu livro A Independência do Poder Judicial em Moçambique (2022), convida-nos a reflectir sobre essa questão. A obra de Ucama é tanto crítica quanto propositada. Ele questiona se o facto de o Presidente nomear os órgãos judiciais não compromete a autonomia do sistema de justiça. Contudo, sua análise não se restringe à realidade moçambicana. O autor amplia o olhar, comparando com outros contextos, como o dos EUA, onde o Presidente da República também nomeia altos dignitários do poder judicial.

Todavia, como lembra o filósofo Severino Ngoenha, o problema não está apenas no acto de nomear, mas nas condições e nos mecanismos que garantem a transparência, o escrutínio público, a responsabilização e a idoneidade dos nomeados. Nos EUA, por exemplo, o Senado exerce um papel decisivo ao avaliar a competência e integridade dos candidatos, através de um exercício de checks and balances que confere legitimidade às nomeações. É verdade que a Lei de Organização Judiciária (2007) moçambicana prevê princípios semelhantes. Mas, salvo melhor entendimento, tais princípios são pouco praticados.

A separação dos poderes não significa isolamento, ou não implica que cada um aja de forma autónoma e desconectada dos demais. O equilíbrio democrático exige cooperação e, sobretudo, mecanismos de controlo mútuo. É preciso criar leis que não apenas regulem o poder, mas que o limitem e responsabilizem quem o exerce.

O desafio de Moçambique é, portanto, encontrar o seu próprio modelo de contrapesos, adaptando a teoria clássica às suas realidades políticas e históricas. A independência do poder judicial não deve ser uma abstracção, mas uma prática institucional viva, capaz de garantir que se passe da ortodoxia (palavras, teorias, leis, decisões, discursos…) à orto-práxis (prática, realização, justiça…).

 

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